“Não me toca seu boboca” e os conceitos de autoproteção

Andrea Taubman, autora do livro, fala sobre o trabalho de prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes

A educação é um importante pilar da prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes, e os livros são fundamentais nesse quesito. Por isso, no Dia Nacional do Livro, conversamos com Andrea Taubmann, autora de “Não Me Toca Seu Boboca”, um livro que trabalha de maneira leve, mas extremamente eficiente, os conceitos de autoproteção com crianças.

Pode nos contar um pouco da sua relação com o tema da proteção da infância? Como você decidiu escrever um livro que trata sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes?

Fui voluntária em abrigo de 2000 a 2007 na Casa de Passagem de Teresópolis (Região Serrana Fluminense) que recebia crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos, em risco social. Algumas delas eram vítimas de violência sexual. Eu ficava muito mobilizada com o olhar delas, parecia que aquele brilho tão próprio da infância, que tudo quer saber, desaparecia depois dessa situação. Como mãe de dois meninos, a possibilidade de que eles pudessem passar por algo assim me atormentava. Foi muito difícil para mim, enquanto mãe, falar sobre o perigo do abuso com meus filhos. Escrever o livro “Não me toca, seu boboca!” foi um caminho natural, um compromisso da minha alma com a infância e com toda a sociedade – afinal, somos todos adultos responsáveis por todas as crianças e precisamos falar sobre isto com os pequenos, quase sempre sem saber muito bem nem por onde começar (os relatos de mães que postam suas impressões sobre o livro nas redes sociais sempre abordam esta dificuldade). A questão mais urgente é que, se não falarmos, fortalecemos os abusadores, que se valem da falta de discernimento das crianças para cometer seus crimes.

 

Na construção do “Não Me Toca, Seu Boboca!”, você uniu suas vivências como voluntária em unidades de acolhimento de crianças e também buscou referências técnicas. Pode nos explicar, com mais detalhes, como foi esse processo de pesquisa/escrita?

Escrevi a primeira versão no início de 2010, com o esqueleto do texto gestado a partir do material emocional e vivencial adquiridos no abrigo, mas ainda sem referências técnicas. Entendendo a responsabilidade imensa que o assunto demandava, procurei um querido amigo de infância, psicólogo especialista em terceiro setor, para que desse seu parecer sobre o que eu tinha escrito. Com muita sabedoria, ele respondeu que tinha gostado do texto, mas que o ideal seria que eu entrasse em contato com especialistas no assunto e imediatamente me colocou em contato com a Childhood Brasil, instituição com a qual mantinha relações de cooperação por meio da empresa onde trabalhava à época. Enviei o texto por e-mail e recebi a resposta com elogios à minha iniciativa e o reconhecimento que produzir materiais sobre violência sexual contra crianças e adolescentes é um desafio. E também continha uma série de considerações e sugestões de leituras para que eu pudesse ter os dados teóricos que pudessem sustentar tecnicamente o projeto, anexando o importantíssimo documento “ORIENTAÇÕES DE COMUNICAÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES” (2010) e se colocando à disposição para fazer novas revisões. Fiz as primeiras alterações após esses estudos.

Troquei ideias com outra amiga psicóloga e psicanalista que teve algumas pacientes vítimas de violência sexual e ela me trouxe outros aportes com os casos. Mais uma outra amiga, juíza de família com importante trajetória na área da infância e dos direitos humanos, me instruiu sobre as publicações de estatísticas de alguns órgãos que se dedicam ao assunto, por exemplo, o Dossiê Criança do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, em que constam relatórios sobre a gravidade e o perfil dos chamados “crimes contra a dignidade sexual”, e me colocou em contato com profissionais da psicologia e do meio jurídico que atuavam no Núcleo de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes (NUDECA). A partir desses encontros, fomos ajustando texto e ilustrações. A opção por utilizar animais humanizados como personagens, por exemplo, foi uma orientação da equipe de psicologia do NUDECA, que sugeriu utilizar este recurso para minimizar o impacto da aridez do tema e, ao mesmo tempo, resolver o impasse das características físicas dos personagens, de tal forma que, em hipótese alguma, a criança pudesse relacionar alguma pessoa conhecida com esses personagens. Também participei de seminários e simpósios que abordavam a questão, principalmente no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Posso afirmar que não há uma vírgula, uma exclamação, uma palavra que não tenha sido estudada à luz desses conhecimentos. Algumas frases foram reescritas mais de 30 vezes. Cada palavra, cada frase, cada rima foi meticulosamente estudada e consultada com os especialistas para que nada no texto ficasse dúbio ou promovesse de alguma forma a revitimização da criança que já foi abusada e não consegue identificar ou falar sobre o acontecido. Até o título e o nome do personagem agressor demandaram profundas reflexões. Falar de abuso e violência sexual na infância, assunto que tanto atormenta, repugna e apavora – de uma maneira suave e eficiente – é um grande caminhar sobre o fio da navalha. No final do livro, com a permissão da Childhood Brasil, informamos sobre como denunciar. O esforço culminou na conquista do Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes em sua 8ª edição (2018) na categoria “Produção de Conhecimento”.

 

Na sua opinião, de que maneiras a literatura infantil pode proteger crianças e adolescentes?

Essa pergunta é muito relevante, porque envolve o que ainda é pouco percebido em nossa sociedade. Somos um país sem muita tradição leitora, o que faz com que nos apropriemos de forma tímida dessa ferramenta extraordinária que é a literatura infantil, capaz de promover oportunidades excelentes de abrir o diálogo com as crianças e os adolescentes a respeito das questões mais sensíveis. Sou defensora e fã incondicional da literatura como ponte para alcançar as emoções – tema de uma das palestras que mais gosto de fazer. Costumo dizer que a literatura infantil, em particular, é uma espécie de amoroso pé-de-cabra capaz de abrir a porta do coração que às vezes emperra. As crianças muito novas, de um modo geral, têm dificuldades para explicar o que sentem, principalmente se for algo que as faz sofrer ou incomoda: ainda faltam palavras no seu vocabulário e o repertório de experiências delas é pequeno. Então a leitura compartilhada com os adultos que são referência afetiva para a criança constitui uma oportunidade preciosa para que ela possa se colocar emocionalmente, por meio da identificação com a história e os personagens. Assuntos delicados demandam cuidados e disponibilidade emocional. O momento da leitura compartilhada gera intimidade entre a criança e o adulto que lê com ou para ela. Estas são condições fundamentais para que o ambiente de confiança se estabeleça e propicie a conversa sem temores. No recorte específico da violência sexual, esta potência se amplia ainda mais, principalmente em relação às crianças mais novas, que não têm referências comparativas entre o que é um carinho adequado e um toque abusivo. O relato de uma mãe que enviou o depoimento do seu filho de 4 anos quando viu o livro, me traz essa certeza: o menino, olhando as ilustrações começou a narrar a história: “- Olha só, mamãe, é um lobo vestindo uma fantasia de ovelhinha. Ele tá tentando enganar todo mundo! Olha! Ele tá tocando na coelhinha, mas ela não quer! Ela tá gritando com ele… Ele deixou a fantasia cair! Ele dá medo! Conta o resto mamãe, quero ouvir…” (do blog @contaoutravez).

Qual seria a sua orientação para pais, responsáveis e educadores utilizarem o “Não Me Toca, Seu Boboca!” na prevenção da violência sexual contra crianças e adolescentes?

Sabedores da enorme dificuldade que a maioria das pessoas têm para falar sobre este assunto com crianças e adolescentes, criamos um guia de leitura, o “Manual do Professor” disponibilizado gratuitamente para download no site da editora, com bastante material de apoio, consulta e sugestões de atividades, antes e após a leitura. Para contar a história de “Ritoca”, a coelhinha protagonista do livro, que narra o acontecido em primeira pessoa, digo para as crianças que eu vou contar uma “história de quase” e relaciono com uma situação hipotética, porém bem conhecida das crianças: uma festa de aniversário, em que todas as crianças estão correndo de um lado para outro, quando, da cozinha, sai alguém com uma bandeja cheia de copos de bebida. “Será que a criançada conseguiu parar antes de trombar com quem levava a bandeja?” – indago. A maioria diz que não, assim prosseguimos a brincadeira, aventando os desdobramentos dessa situação. No final, lanço a segunda hipótese: “e se as crianças conseguiram parar antes de trombar, o que aconteceu?”. A resposta, quase sempre é: “nada”. É então que revelo o que é a tal “história de quase”: algo que poderia ter acontecido, mas não aconteceu. E assim apresento o convite à leitura. O livro traz uma parte informativa para a criança, também narrada por “Ritoca”, em que ela vai “contando” para o leitor o que não é adequado e quais as estratégias que os abusadores utilizam para intimidar suas vítimas, mas de uma forma muito leve e lúdica – afinal, é a voz de uma criança empoderando outra, o que gera grande conexão entre os leitores e as leitoras com a personagem e sua história. Por fim, “Ritoca” busca acolher a criança vítima, que se sente culpada por ter sofrido a violência, outra estratégia típica dos abusadores. O livro está sendo usado em diversas instituições, inclusive no TJRJ. De acordo com a psicóloga Glicia Brazil, o livro atualmente é utilizado pela Equipe Técnica de Psicólogos, no momento inicial da entrevista com as crianças, nos casos de violência, como um instrumento lúdico facilitador da interação da criança com o psicólogo e com a mensagem de apoio à criança-vítima.

 

Por fim, você tem ou pensa em ter outros projetos que trabalhem no âmbito da proteção da infância?

Sim, sempre! A proteção da infância ocupa grande parte dos meus pensamentos e passo muitas horas trabalhando em diferentes frentes para concretizar minhas ideias. Vivemos tempos muito paradoxais: temos um oceano vasto de acesso à informação – a internet – que, ao mesmo tempo que pode oferecer possibilidades infinitas de conhecimento e interação, pode também ser a porta de entrada dos piores pesadelos na vida de uma criança e/ou adolescente. Costumo dizer que “nada é o que é, tudo é como se usa”. A navegação sem monitoramento nem curadoria me angustia profundamente e me desafia a escrever sobre, a conversar com as famílias e as escolas, a buscar oportunidades de abrir diálogos com a sociedade que precisa se conscientizar sobre estes fatos inexoráveis, contra os quais ainda não sabemos como lutar. A verdade é que todos nós – adultos responsáveis – estamos buscando caminhos para equacionar estes desafios e proteger nossas crianças e adolescentes. Mas, assim como foi um desafio escrever “Não me toca, seu boboca!” (que consumiu quase oito anos desde o primeiro texto até sua publicação em outubro de 2017), entendo que será necessário encontrar o caminho adequado para informar sem perder o encantamento do “era uma vez…” que faz com que tudo seja visto pelo olhar empático das relações afetivas.

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