Sobre infâncias feridas: podemos prevenir o abuso sexual contra crianças?

Por Heliana Castro Alves 

 

Quando a Childhood Brasil me convidou para escrever um artigo sobre violência sexual contra crianças em função da campanha de 18 de maio, eu hesitei um pouco. É um tema que precisa ser abordado com a máxima responsabilidade. Realizei meu mestrado sobre infâncias feridas em 2007, mas até hoje eu retorno à experiência direta que tive junto às crianças violentadas, e algumas vezes, até afastadas de suas famílias. Na minha prática cotidiana como terapeuta ocupacional na assistência social, muitas vezes eu me deparo com situações difíceis de lidar envolvendo situações familiares/ sociais complexas que exigem uma rede de cuidados intensiva para proteger essas infâncias violentadas. Resolvi então aceitar o convite, me sentindo desafiada a lançar novas compreensões ou estratégias para além daquelas que apontei inicialmente na minha dissertação de mestrado[1].

Antes de abordarmos estratégias para enfrentamento e prevenção da violência sexual contra crianças, é necessário pensarmos os fatores que levam crianças a sofrer abusos, violências ou serem vítimas de exploração sexual. Neste sentido, antes de abordarmos o microssistema familiar, que é onde concretamente as situações de violência se eclodem diante de um profissional da saúde ou da assistência social, é necessário ampliar nosso olhar e observar o macrossistema da cultura mais ampla.

A teoria bioecológica de Bronfenbrenner[2] pode ser uma ferramenta importante para essa compreensão, observando os fatores de risco e vulnerabilidade em cada sistema em que a criança se insere. De fato, a cultura é um fator importante a ser considerado quando falamos em infâncias roubadas: vivemos numa cultura adultocêntrica, patriarcal, racista e classista, que determina as vítimas mais frequentes de abusos e violências. Como nos mostra o próprio site da Childhood Brasil, as crianças negras meninas, que se encontram na base do sistema de opressão, são as vítimas mais frequentes. Isso não quer dizer que outras crianças não possam ser abusadas, obviamente. O que queremos dizer é que entre meninas e meninos, as meninas são vítimas mais frequentes porque nos encontramos numa sociedade machista, embora meninos também possam ser vítimas. Entre meninas brancas e meninas negras, as negras são vítimas mais frequentemente porque estamos numa sociedade machista e racista, o que não impossibilita que meninas brancas sejam violentadas.

Este olhar para o fator macrossistêmico da cultura, que envolve como a sociedade é construída historicamente, é extremamente importante para pensarmos em estratégias específicas mais amplas. Por isso que as campanhas devem ser intensificadas: a partir das mídias mais amplas (usando televisão, internet, cartazes, etc) toda uma cultura pode ser modificada ao longo do tempo.

Além da necessidade de fortes campanhas publicitárias e midiáticas, nós também precisamos destas campanhas intensificadas em núcleos comunitários, aproveitando dos equipamentos sociais como escolas, Unidades Básicas de Saúde, Centros de Referência Social, hospitais, entre outros equipamentos que possam sustentar a mudança cultural a partir de programas ativos e de instalação de eventos ou intervenções diretas que favoreçam o fortalecimento de vínculo e escuta ativa das famílias e crianças que frequentam estes equipamentos. Uma criança não vai ligar para o 0800 do cartaz para denunciar um abuso que é silenciado. De fato, apenas um adulto fará isso por ela, e a verdade é que nem sempre teremos um adulto protetor por perto da criança violentada. Embora o disque denúncia seja extremamente importante, precisamos também abrir canais de escuta ativa das crianças que não possuem uma rede social de apoio suficientemente forte entre as relações sociais diretas que ela vivencia no seu cotidiano. É importante termos isso em conta ao pensarmos em estratégias locais de enfrentamento durante as campanhas, com abertura de eventos e ações que possam intervir diretamente junto às crianças, suas famílias e comunidade, propiciando espaços de conversa, bate-papo, oficinas de cidadania, etc. A relação direta destes equipamentos sociais em um determinado território, atingindo núcleos familiares a partir de ações e intervenções efetivas sobre o tema, configura o que Bronfenbrenner chama de mesossistema e favorece um fator importante que impacta positivamente o desenvolvimento infantil e a prevenção de violência.

Agora vamos para o microssistema familiar, que é onde as situações concretas – infelizmente algumas vezes até trágicas – aparecem. Não necessariamente o agressor está presente no núcleo familiar, embora, infelizmente, na maior parte das vezes no que diz respeito à violência e abuso sexual, o agressor faz parte da própria família. Algumas coisas precisamos entender enquanto cuidadores, pais e profissionais da saúde/ assistência social sobre a dinâmica deste tipo de violência: o fenômeno do SILÊNCIO. É uma característica diferente dos outros tipos de violência (como a violência física) que muitas vezes acontece às claras. A violência sexual envolve as crianças numa trama muito difícil de escapar pelo fato delas não terem desenvolvido ainda recursos internos para lidar com ameaças vindas de um adulto que tem poder sobre ela. O abuso sexual envolve suas vítimas perigosamente em situações de segredo que na maior parte das vezes elas não conseguem enfrentar sozinhas. Afinal, vivemos numa sociedade adultocêntrica, em que as crianças não são escutadas e muitas vezes não são críveis. O silenciamento da vítima é um elemento importante que deve ser compreendido pelos cuidadores e profissionais para pensarmos em estratégias de enfrentamento ou, algumas vezes, até de prevenção.

Por ocasião do meu trabalho de mestrado, num nível de atenção direta junto a crianças vítimas de violência doméstica, eu aponto a narrativa de contos de fada, seguidas de brincadeiras simbólicas, como recursos que podem nos ajudar na compreensão da criança em seu processo de desenvolvimento e expressão da sua realidade de vida. Isso porque, como aponta outros estudos como de Celso Gutfreind, o ateliê de contos oferece às crianças a possibilidade de recontar, re-ouvir, reviver as suas próprias histórias para, a partir disso, construí-las, contá-las, expressá-las e, sobretudo, elaborá-las.

É possível que o conto, enquanto uma metáfora, ofereça um distanciamento seguro que possibilita a criança chegar até seus conflitos – relacionados a uma situação de violência – sem que ela se sinta diretamente ameaçada pela situação de constrangimento de narrar um episódio que ainda seja perturbador a ela, especialmente quando se trata de uma violência sexual. O espaço para expressão lúdica de crianças violentadas, na utilização de materiais e elementos dos contos narrados, muitas vezes as ajuda na representação, expressão e elaboração de uma situação conflitante. A utilização da narrativa oral e do brincar simbólico muitas vezes favorece junto às crianças e ao terapeuta/ educador, uma aproximação mais afetiva, acolhedora que propicia uma sensação de segurança para falar sobre aquilo que as aflige, sem tocar diretamente ao ponto. É necessário algumas vezes primeiro estabelecer um ambiente acolhedor para que a criança se sinta segura para falar, antes de abordar o tema de forma direta. E para isso, os contos, a narrativa oral e o ambiente lúdico, podem apontar estratégias favoráveis para o desenvolvimento deste ambiente.

Como terapeuta ocupacional, por exemplo, em um CRAS – Centro de Referência em Assistência Social – eu já trabalhei oficinas de Body Map (desenho do próprio corpo em pedaços grandes de papel kraft) para conversar com as crianças sobre as partes do corpo, alertando para situações de abuso em referência às partes íntimas do corpo que ao serem tocadas por adultos, possam causar vergonha, medo ou estranhamento. Especialmente, na situação de acolhimento e afeto seguro durante essa oficina, falamos sobre a importância delas contarem as situações que as constrangem, com um adulto que elas confiem muito – podendo ser um familiar, um professor, o terapeuta ocupacional, o psicólogo ou o assistente social. Essa abordagem foi preventiva.

Para terminar esse artigo, eu gostaria de apontar algumas dicas práticas de livros que podem facilitar a comunicação do abuso, após o desenvolvimento inicial deste ambiente acolhedor de escuta afetiva através do lúdico. Tenho observado que tem surgido algumas interessantes abordagens través da literatura. Como eu disse, porém, é importante que esses livros sejam lidos por adultos – profissionais ou cuidadores – que tenham um vínculo positivo com a criança para que elas possam falar diretamente sobre o tema. E, algumas vezes, leva um tempo para que ocorra o processo de fortalecimento de um vínculo que permita a criança expressar diretamente sobre o abuso sexual. Mas aqui vão as dicas dos livros:

– “Conte para alguém” de Thais Laham Morello, ilustrações de Luiza Pannunzio, pela editora Metanoia. Este livro é interessante porque toca diretamente no elemento mais perturbador da dinâmica do abuso sexual: o SILÊNCIO. A personagem Carol consegue contar o seu “segredo” para uma psicóloga.

– “Pipo e Fifi: prevenção sexual na infância”, por Caroline Arcari, ilustrações de Isabela Santos. O livro aborda de forma muito lúdica e interessante sobre o “toque do SIM” e o toque do “NÃO” ajudando as crianças a entenderem que determinados toques podem ser constrangedores e causar medo, e não devem ser guardados em silêncio, como um segredo. Acredito que essa noção possa ajudar as crianças a discriminarem as situações de abuso mais facilmente, já que elas ficam confusas quando as situações de abuso são mascaradas em forma de carinho pelo adulto.

– “Não me toca seu boboca”, de Andrea Viviane Taubman e ilustrações de Thais Linhares, aborda sobre situação de abuso sexual cometida por um agressor de fora do núcleo familiar, alertando a crianças sobre mecanismos sutis de envolvimento da criança antes da configuração da situação de abuso. Aqui também vemos o segredo e o silenciamento, como parte da dinâmica do abuso sexual ofertando recursos para que a criança consiga enfrentar a situação, ao compreender quando um tipo de toque não é apropriado.

Antes de tudo, pensando que estou aqui falando com pais, cuidadores, professores, psicólogos, terapeutas e profissionais da assistência social, eu gostaria de alertar que abordar sobre infâncias feridas, nos remete frequentemente às nossas próprias dores. Por isso que atender essas crianças violentadas ou até em situações de prevenção de violência, nos exige um olhar para nossas próprias histórias. Em algumas situações, esse olhar para si, ou para as histórias de amigas e amigos da sua infância que foram violentados, pode ser muito importante para o desenvolvimento de competências profissionais e individuais para lidar assertivamente com essas situações. É por almejar o fortalecimento de redes de acolhimento e cuidado às infâncias feridas, que escrevo este artigo. Todos nós somos responsáveis pelas nossas crianças.

 

Heliana Castro Alves

É terapeuta ocupacional formada pela UFSCar, atuando na assistência social e em diferentes serviços e contextos sociais. Possui mestrado em educação especial pela UFSCar e doutorado em psicossociologia pela UFRJ. Atualmente é docente do departamento de terapia ocupacional da UFTM e supervisora de estágio, atuando diretamente em equipamentos sociais e de cultura em comunidades periféricas.

 

Bibliografia:

Alves, Heliana Castro Alves. “Utilização de contos de fadas e atividades simbólicas na compreensão de crianças vítimas de violência”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Especial do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, 2007. Acesse a dissertação integral no link: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/2972?show=full.

Alves, Heliana Castro Alves; Emmel, Maria Luisa Guillaumon. Abordagem bioecológica e narrativas orais: Um estudo com crianças vitimizadas. Paidéia, 2008, 18 (39), pp 85 – 100. Disponível no link: https://www.scielo.br/j/paideia/a/N8r54KKhXP4vfqbzTwfn7Bk/?lang=pt.

Bronfenbrenner, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. São Paulo: Artmed, 1996.

Gutfreind, Celso. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia da criança. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

Morello, Thais Laham. “Conte para alguém”, ilustrações de Luiza Pannunzio, pela editora Metanoia

Arcari, Caroline. “Pipo e Fifi: prevenção sexual na infância”, ilustrações de Isabela Santos. Editora Caqui, 2020.

Taubman, Andrea Viviane. “Não me toca seu boboca”, ilustrações de Thais Linhares. Editora aletria, 2020.

[1] Alves, Heliana Castro Alves. “Utilização de contos de fadas e atividades simbólicas na compreensão de crianças vítimas de violência”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Especial do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, 2007. Acesse a dissertação integral no link: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/2972?show=full. É também possível acessar o artigo escrito a partir da dissertação no link: https://www.scielo.br/j/paideia/a/N8r54KKhXP4vfqbzTwfn7Bk/?lang=pt

[2][2] É possível conhecer melhor a obra de Urie Bronfenbrenner, sugere-se a leitura: “A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. São Paulo, Artmed, 1996.

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