afetosecretos, o filme
A atmosfera é futurista. Uma mulher adulta se encontra encerrada numa bolha, como a menina que ela foi e de quem não consegue ainda se despedir. Os sonhos, fragmentados e simbólicos, mantêm vivas as sensações experimentadas na infância, quando seu próprio pai a molestava sexualmente e ela nada entendia, pois confundia o abuso com amor.
Sem conseguir se defender diante do perigo iminente, a mulher-menina revive seu medo. “Por que me deixas trancada aqui? Tenho tanto medo, tanto frio. E se ele não voltar mais? Posso morrer presa aqui, sozinha? Era tanto o medo que o suor me banhava toda. Eu ficava imóvel e imobilizada pelas carícias e beijos, desejei tantas vezes matar aquele que amei um dia como meu pai”, diz a voz da Psique.
Com linguagem poética e uma estética apurada, a psicanalista Graça Pizá recria em seu segundo filme, afetosecretos, o conteúdo latente e manifesto dos sonhos que as crianças vítimas de abuso incestuoso lhe relataram em três décadas de experiência clínica. Lançado em 2009, o média-metragem deu origem a um livro homônimo, apoiado pela Childhood Brasil, no qual Graça explica os conceitos presentes nas imagens oníricas.
Um exemplo é o conceito de “nojo”, que aparece relacionado ao sonho do banho, exibido no filme. “Nojo é o sentimento de repugnância da proximidade do corpo e do contato sexual. O nojo provoca intensa retração psíquica, a criança se cala para se proteger. É também uma reação de proteção ao excesso de excitação corporal a que a criança está exposta. É uma defesa do eu, tentando evitar o ataque desencadeado pelo incesto”, diz Graça. As falas das crianças atendidas na Clínica Psicanalítica da Violência, fundada pela terapeuta, serviram de base para a elaboração do conceito: “ele tem língua de fogo, língua que me lambe e me dá nojo”; “ele faz xixi grosso em mim, ele é nojento”; “papai-tubarão joga uma gosma verde em cima de minha ximbica quando me dá banho” ou “a barba dele me machuca”. São dizeres infantis que não surgem num contexto familiar saudável.
“Muitas crianças, quando sofrem o abuso incestuoso, ainda não dominam a linguagem verbal, não falam. Por volta dos dois anos, começam a se expressar rudimentarmente, ainda aprendendo a compor uma frase”, afirma Graça. “Toda a estética desse filme foi construída em função disso: dessa linguagem muito específica que as vítimas de abuso falam.”
Segundo a psicanalista, a criança internaliza a violência como sendo uma forma de amor. Ela não consegue entender toda a linguagem de afetos – olhares, palavras, falas e carinhos – que lhe é direcionada. “A criança, então, vai pegando os fragmentos desses códigos e tentando montar algo que faça sentido. Só que não tem sentido. O trauma vem daí.”
O filme afetosecretos já foi exibido em diversas cidades e vários festivais, incluindo uma sessão especial nas Nações Unidas. O afetosecretos/vocabulário será lançado na Bienal Internacional do Livro de São Paulo em agosto.