Maioria dos casos de violência sexual infantojuvenil não resulta em condenação

A presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP), promotora Helen Crystine Corrêa Sanches alerta que o sistema de Justiça já avançou em muitos aspectos, mas ainda prevalece a impunidade nos processos contra agressores sexuais de crianças e adolescente, e o atendimento às vítimas ainda é precário, em muitos locais.

A Childhood Brasil em parceria com a ABMP elaborou fluxos operacionais para o atendimento adequado a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual e da exploração sexual. Qual o papel do Ministério Público nestes casos?
O desenvolvimento de fluxos operacionais sistêmicos pela ABMP surgiu da necessidade de aperfeiçoamento do Sistema de Garantia dos Direitos visando o alinhamento das ações institucionais de cada responsável pela garantia da promoção, proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes. Além da necessidade de indicar as fragilidades e as deficiências estruturais que exigem intervenção, indicando as medidas indispensáveis para o seu funcionamento adequado.

Cabe ao Ministério Público adotar todas as medidas judiciais e extrajudiciais em defesa de crianças e adolescentes cujos direitos tenham sido violados, além de atuar para a regularização da rede e dos serviços de atendimento, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a normativa internacional. Atua como agente imprescindível para identificar se há negligência ou omissão no fluxo de atendimento, adotando todas as medidas necessárias.

Cerca de quanto tempo demoram os processos e qual a percentagem de casos que se desdobra em condenações?
O tempo de tramitação das ações penais para responsabilização de crimes sexuais varia de acordo com o número de diligências a serem adotadas para a comprovação da culpa e tende a se dilatar se as testemunhas e as partes residem em outras cidades, o que demanda a expedição de precatórias. Embora não haja um dado estatístico apurado nessas situações, diante das peculiaridades da prática do crime sexual, que na sua grande maioria não conta com testemunhas, e das dificuldades para obtenção da prova – em face da precariedade da estrutura da polícia investigativa – poucos casos resultam efetivamente em condenação.

Quais são os principais direitos e garantias da criança que sofre abuso ou exploração sexual?
Devem ser aplicadas as medidas protetivas previstas no ECA, especialmente o atendimento médico e psicológico, garantindo-lhe todos os meios para que todos os demais direitos, como saúde, educação, convivência familiar, dentre outros, sejam respeitados.

Como a senhora avalia o atendimento das vítimas de abuso no país?
Hoje, o atendimento é prestado pelos Centros de Referência Especializados em Assistência (CREAS) que contam com uma equipe multidisciplinar. Porém, em algumas cidades com elevada demanda, ainda se pode constatar o atendimento precário, com longas filas de espera e sem resultado efetivo na superação do trauma decorrente do abuso e na construção de um novo projeto de vida.

Depois duas décadas da criação do ECA, quais são as conquistas e os desafios?
O Sistema de Justiça avançou em vários aspectos, seja estrutural, com a implementação de Varas, Promotorias de Justiça e Defensorias especializadas, Centros de Apoio, Coordenadorias e Núcleos especializados, mas também operacional e procedimental, com a qualificação permanente dos seus operadores. Mesmo assim, ainda temos vários desafios como a implantação efetiva de equipes técnicas, a ampliação da estrutura especializada e a qualificação e aperfeiçoamento com ênfase no fortalecimento da rede de proteção dos direitos da criança, que demanda a atuação, por exemplo, ainda na elaboração do orçamento público.

Qual sua avaliação sobre os resultados da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no País (2003-2004)?
O grande mérito da CPI foi dar visibilidade para o tema da violência sexual, antes ainda velado por pactos de silêncio, expondo as redes e o envolvimento de pessoas e autoridades na prática de crimes tão graves. Além disso, os resultados contribuíram para as alterações na legislação penal, que passou a punir mais severamente os crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Todos os casos da CPI estão sendo apurados nas respectivas ações penais e, após regular tramitação, espera-se que sejam responsabilizados os agressores.

Você acredita que a recomendação do CNJ para que o depoimento de crianças vítimas de abuso seja colhido em salas especiais com gravação de câmeras deve ajudar a combater a impunidade e de que forma?
Sem dúvida o depoimento protegido contribuirá significativamente para a coleta da prova nos crimes sexuais, pois, nesses casos, a palavra da vítima assume especial relevância e, na sua grande maioria, é o único elemento capaz de embasar a condenação, o que muitas vezes era prejudicado, pois, no modelo anterior, em que a vítima prestava seu depoimento na presença do réu, muitas vezes se sentia coagida e ratificava a versão apresentada, além de sofrer novos danos emocionais em decorrência da situação constrangedora.

Reportagens e estudos mostram que há muitas pessoas influentes, como juízes e empresários, envolvidos nas redes de exploração sexual e quem tenta quebrar este ciclo é ameaçado de morte. Como enfrentar este problema?
Independente da função ou cargo do agressor, quem conhece situações de violência sexual contra crianças ou adolescentes tem o dever legal de comunicar as autoridades competentes, que podem utilizar-se dos instrumentos legais para garantir a proteção e segurança às testemunhas.

Todo cidadão que deixar de prestar assistência em situação de exploração sexual de crianças responderá pelo crime de omissão, mas por que a maioria ainda não denuncia ou acha normal?
Muitos não denunciam porque temem alguma retaliação do agressor ou não querem ser incomodados para prestar depoimentos na delegacia e na Justiça. Porém, muitas pessoas também não o fazem porque banalizam a violência, especialmente tratando-se de adolescentes, acreditando que a vítima foi quem seduziu o agressor ou porque voluntariamente deseja permanecer naquela situação de exploração sexual.

Qual o papel dos jornalistas no enfrentamento à questão e como podem colaborar com a Justiça?
A imprensa presta um relevante serviço à sociedade no enfrentamento da violência e da exploração sexual infantojuvenil, divulgando os meios para denúncia, debatendo o impacto da agressão sofrida no desenvolvimento da vítima e também noticiando os fatos que estão sendo apurados ou já foram julgados. Contribuem divulgando a rede existente, incentivando a denúncia e relatando os casos às autoridades competentes.

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