Exploração sexual de crianças e adolescentes não é prostituição!

Artigo 227 da Constituição Federal do Brasil: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”[1]

A decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ, divulgada em 27 de março de 2012, inocentando um indivíduo que explorou sexualmente três adolescentes de doze anos, envergonha-nos, causa náuseas. Embora não seja a única, pois recentemente temos assistido a muitas notícias vindas da justiça brasileira que nos causam profundo mal estar, exige reflexão e ponderação sobre os fatores imbricados na questão.

Chegar ao ponto de “assassinar” de uma vez só a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e todos os acordos e convenções internacionais assinados pelo Brasil é no mínimo uma afronta à sociedade brasileira, nosso “fundo do poço”.

A decisão do STJ é emblemática, por jogar luz sobre e reverberar uma problemática bem mais complexa, histórica, socio-econômica e cultural, denunciando a forma com que nossa sociedade continua a olhar e entender a infância e a adolescência.

As sociedades modernas precisaram de quase quatro séculos para produzir a noção de infância, do século XVII ao século XXI , para olharmos uma criança hoje e a reconhecermos como uma pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.

Até o século XVII, tão logo uma criança nascia e obtinha independência de seu cuidador, de minimamente “se virar”, esta era inserida nas atividades da Pólis, que incluíam trabalho e outras atividades similares as dos adultos. Como diz Philippe Ariès[2], eram vistos como adultos em miniatura, participando inclusive dos jogos sexuais.

No Brasil, de 1500 até hoje, foram necessários 500 anos, passarmos por toda forma de violação de direitos humanos de crianças e adolescentes, para termos uma legislação que concebesse criança e adolescente como sujeito de direitos. Das naus portuguesas que trouxeram do outro lado do mundo crianças e adolescentes “órfãos”, “abandonados” e “delinquentes”, a catequização de povos indígenas, os 300 anos de escravidão negra, a roda dos “expostos”, o primeiro Código de Menores de 1927 e seu congênere de 1979 (pautados na lógica da situação irregular). Seguimos ainda por séculos na visão adultocêntrica da sociedade, que colocava crianças e adolescentes sempre submetidos aos desejos, necessidades, mandos e desmandos dos adultos, sendo filhos e filhas propriedades de seus pais, e crianças e adolescentes “abandonados” ou “delinquentes” propriedade do Estado. Até finalmente chegarmos ao Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto da Criança e Adolescente, em 1990, quando crianças e adolescentes passam, na lei, a ser reconhecidos como sujeitos em peculiar estágio de desenvolvimento e detentores de direitos.

Os avanços conquistados no campo de legislações, foram fruto de uma grande mobilização e lutas do conjunto da sociedade brasileira, concomitantemente a outros importantes movimentos e lutas, que aconteciam no período do anos de “chumbo” e eclodiram nos anos 80.

Essa longa história deixou suas marcas, e antigos pressupostos expressam-se em práticas ainda cotidianas. Observar a história da criança no Brasil, significa entendermos quais foram os diferentes destinos dados as “infâncias”, sobretudo o destino dado às crianças e adolescentes pobres, que foram e continuam sendo sucessivamente violadas.

Este viés da classe social, o olhar, o tratamento e os destinos dados as crianças pobres no Brasil, nos dão pistas importantes do porquê da decisão do Superior Tribunal de Justiça. Se não fossem pobres, será que haveria esta inversão no julgamento? Sim, pois quem na realidade passou a ser julgado foram as adolescentes. Será que se fossem meninas de classe média ou alta seriam também tomadas como “prostitutas” desde longa data? Ou seriam tratadas como adolescentes vítimas de exploração sexual?

Tal situação social vem sendo naturalizada, ou seja, parece ser da ordem da natureza que meninas pobres sejam exploradas e que a sociedade de uma forma geral considere que isso foi uma “escolha” e que as coisas são sempre assim mesmo. Trata-se de mais uma vez naturalizar o que é socialmente construído, para não responsabilizar ninguém além das próprias adolescentes de sua condição.

Mas o viés sócio-econômico não é o único da questão. Além de pobres e adolescentes, são também mulheres, meninas. As questões de gênero e seu histórico em nossa sociedade permeiam toda esta situação e estão também refletidas na decisão do STJ. Não por acaso a história da luta pelos direitos de crianças e adolescentes se cruza e caminha em paralelo aos movimentos de luta pelos direitos das mulheres. Foram estes, na verdade, que abriram caminho para as discussões sobre as violações das demais “minorias”, sendo estas as crianças e os adolescentes, os negros, os deficientes. O movimento feminista traz em seu bojo a luta para que mulheres deixem de ser tratadas como objetos à satisfação dos desejos masculinos. Para que deixem de ser vistas como seres que, uma vez intelectualmente inferiores, deveriam servir aos homens das mais diferentes formas, incluindo a sexual. Corpos e afazeres à disposição da satisfação masculina. O que cabe a mulher, o que cabe ao homem. Embora muito tenha se transformado, à mulher ainda cabe, muitas vezes, servir o homem sem questionamento, dispor de seu corpo para o deleite do prazer masculino em detrimento do seu próprio, e, caso não queira assim ser usada, “dar-se ao respeito”, uma vez que não cabe ao homem resistir, e sim à mulher negar. Já dizia o velho ditado “prenda suas cabritas que meu bode está solto!”. Quem mandou aquelas meninas estarem nas ruas “oferecendo serviços sexuais”?

Na querela da decisão do STJ está implicada outra questão fundamental , que vai muito além da discussão de estupro de vulnerável. O que temos de discutir é a situação da violência em si, que foi a situação de exploração sexual a qual as adolescentes foram expostas e submetidas pela contratação e pagamento de “serviços sexuais” por um homem adulto.

Exploração Sexual de crianças e adolescentes Infantil não é “prostituição”. Desde o Primeiro Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, de 1996, em Estocolmo, na Suécia, os países participantes, entre estes o Brasil, definiram pela não utilização do termo “prostituição infantil”, passando a definir como exploração sexual a situação em que um ou mais adultos fazem uso sexual de uma criança ou adolescente, numa relação comercial (que envolve alguma forma de pagamento). Com isso, explicitava-se que crianças e adolescentes não optam ou consentem em situações de abuso e exploração sexual, mas sim que são abusados e explorados sexualmente por adultos, estes em condições de escolher. Como nos diz Eva Faleiros[3], trata-se de uma ultrapassagem de limites pelo adulto em diversos âmbitos, dentre estes, limite daquilo que a criança ou adolescente pode consentir, viver e fazer.

No Brasil, a exploração sexual de crianças e adolescentes é crime previsto em Lei, sujeito a pena de reclusão de 4 a 10 anos e multa, conforme o Artigo 244-A do ECA. E, ainda assim, no mesmo país que possui uma legislação como o ECA e que sediou o 3o Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescente, temos uma decisão recente como a do STJ, que inocentou um acusado de estuprar garotas prostituídas menores de 14 anos.

A decisão do STJ “determina” que as meninas continuem onde estão, afinal este é o destino que lhes cabe – que escolheram, e convida homens adultos a deleitarem-se sem culpa, afinal de contas, que podem eles diante de tal tentação?

Tudo o que poderíamos errar já erramos historicamente com relação aos direitos de crianças e adolescentes brasileiros, não é possível errarmos mais! A sociedade brasileira espera  mais dos atores do Sistema de Garantia de Direitos em relação a proteção de crianças e adolescentes.

Nesse sentido, é tímida e acanhada a nota pública de repúdio do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (CONANDA), divulgada em 29 de março de 2012. Ora, esperávamos muito mais de um órgão que em suas prerrogativas e atribuições legais tem a legitimidade para ações efetivas, concretas e mais arrojadas.

Acertada a decisão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), em acionar a Advocacia Geral da União (AGU), para ação de reversão da decisão judicial.

Precisamos mobilizar todos os atores que direta ou indiretamente atuam em defesa dos direitos da criança e do adolescente, mobilizar as mídias, a opinião pública para definitivamente dizermos que não toleramos e não toleraremos violação de direitos humanos de crianças e adolescentes.

O Brasil irá sediar dois grandes eventos internacionais, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, e existe entre nós a preocupação, pertinente, de termos o cuidado com o fenômeno da exploração sexual contra crianças e adolescentes possivelmente agravada pelos visitantes estrangeiros. Como iremos conseguir impor nossa Lei se nem nós a cumprimos?

Se tudo isso não for o suficiente, devemos recorrer à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Organização das Nações Unidas (ONU), considerando a violação de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Declaração Internacional dos Direitos da Criança, de 1989.

Esperamos que esta indignação, ainda que de uma minoria da população, seja motor para ações efetivas de proteção e para novas discussões, que sejam ampliadas e amplificadas, esclarecendo a população sobre os direitos de crianças e adolescentes, as consequências de sua violação e a responsabilidade dessa mesma população em garantir que estes sejam efetivados e respeitados.

José Carlos Bimbatte Júnior

Psicólogo, consultor e educador, associado fundador da Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Pesquisa Sobre a Criança e adolescente (NECA) trabalha há mais de 20 anos no desenvolvimento de programas e projetos sociais especialmente na área de direitos humanos de crianças e adolescentes em organizações não governamentais nacionais e internacionais, estados, municípios e empresas.

Jaqueline Soares Magalhães

Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Educadora, Consultora em projetos sociais, Professora Universitária.

[1] Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

[2] ARIÈS, Philippe. História Social da Infância e da Família. Rio de Janeiro, LTC – 1981.

[3] FALEIROS, Eva. Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. CECRIA, MJ-SEDH-DCA, FBB, UNICEF. Brasília, 2000.

Disponível em: http://www.mpes.gov.br/

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