Confusão mental e sentimento de culpa são comuns em vítimas de abuso sexual

Ela tinha apenas dez anos quando foi seqüestrada a caminho da escola. Durante oito anos, a austríaca Natascha Kampusch foi submetida a todo o tipo de abuso físico e psicológico até conseguir fugir do cativeiro. Seu relacionamento com o seqüestrador é contado no livro 3096 dias. Segundo a jovem, os assédios sexuais faziam parte dos abusos diários com pancadas, socos e chutes, nas noites em que era algemada e obrigada a dormir com o seqüestrador.

Natascha deixa claro os sentimentos contraditórios que cultivou pelo agressor durante o período. “O homem que me batia, me trancava no porão e me deixava sem comer queria alguém para abraçar”, relata. “A pessoa que me roubou, que retirou minha família e minha identidade, se tornou minha família. Eu não tinha escolha a não ser aceitá-lo como tal”, afirma a autora em outra passagem.

Segundo a psicóloga Jaqueline Soares Magalhães, consultora da Childhood Brasil, a confusão de sentimentos e a culpa são muito freqüentes em crianças e adolescentes abusados sexualmente.

Quais são os principais traumas gerados nos casos de abuso sexual infantojuvenil?
Há uma série de diferentes sequelas encontradas, de acordo com cada caso. Algumas consequências comuns são: dificuldades nos vínculos e relacionamentos interpessoais, principalmente por não confiarem nas pessoas, retraimento social e comportamentos anti-sociais. Há também, às vezes, comportamentos “delinquentes” (que podem ser entendidos como um pedido de ajuda), baixa auto-estima e sentimento de culpa, entre outros.

Por que é tão difícil as vítimas denunciarem os agressores?
Muitos casos ocorrem dentro da própria casa. O vínculo familiar implica em uma série de afetos, hierarquias e numa relação de confiança. Estes fatores interferem de forma direta nas consequências do abuso sexual vivido por uma criança.

O medo de denunciar é frequente nas situações de abuso sexual incestuoso também por uma série de razões: medo de retaliação, de que o abusador cometa alguma violência com outro membro da família; medo de que esta pessoa seja presa e das consequências que isto trará para a família. Além disso, é bastante comum que a criança não reconheça como violência o abuso sexual que vem sofrendo: pode entender como uma forma de carinho, de afeto de determinado familiar com ela. Como se trata de uma situação sexual ainda desconhecida, a criança pode levar algum tempo para se dar conta de que aquilo não deveria estar acontecendo. É possível que só compreenda quando a denúncia acontecer, por parte de outra pessoa que irá explicar à criança que aquilo era errado. As situações de abuso sexual incestuoso ou intrafamiliar são extremamente complexas, não se prendem a regras, e incluem uma gama muito densa de fatores para compreendermos sua ocorrência e funcionamento.

Uma criança que passa tantos anos por qualquer tipo de abuso sexual consegue se curar e se recuperar totalmente?
A palavra “cura” em psicologia e psiquiatria é muito relativa e abre campo para discussões intermináveis acerca de seu significado. Poderíamos considerar, resumidamente, que é possível que pessoas que viveram situações de privação e violência durante um longo período de suas vidas ressignifiquem as experiências e encontrem novos referenciais para continuar vivendo, apesar da violência sofrida. Elas podem voltar a acreditar em relações livres da marca da violência, embora suas memórias estejam sempre presentes. Contudo, é importante ressaltar que para cada uma dessas pessoas este processo será vivido de forma única, de acordo com os recursos que encontrar em si mesma e no ambiente ao seu redor (apoio afetivo, profissional etc.). As marcas e consequências também devem ser compreendidas como únicas a cada uma dessas pessoas. Não há regras. Além disso, muitos fatores estão relacionados à recuperação das vítimas de violência, como a idade em que a violência ou privação aconteceu, o período de tempo em que isso se deu, o tipo de vínculo desta pessoa com o agressor e a rede de apoio encontrada.

No livro, Natascha relata uma série de sentimentos contraditórios em relação ao agressor. Isso é comum em crianças vítimas de abuso, principalmente quando são pessoas próximas que elas confiavam e sentiam carinho?
A relação afetiva da criança com o agressor é deturpada pela inserção de um contexto sexual entre elas que não deveria acontecer. Contudo, afeto, carinho, confiança, amor e dependência podem continuar presentes, originando uma série de sentimentos contraditórios na situação de abuso: a criança pode amar e odiar o agressor, sentir-se culpada pelo abuso e caso algo de ruim aconteça com o abusador (como ser preso ou afastado da família), entre outros. Lidar com estes sentimentos gera grande angústia e sofrimento, daí a importância de que esta criança seja acolhida em uma Rede de Proteção especializada.

A autora do livro afirma que na vida nem tudo é totalmente bom ou mal como parece e diz que as pessoas rotulam erradamente o que ela sentiu e sente pelo agressor. É comum esta confusão mental acontecer, isso leva à culpa?
A colocação dela de que nem tudo é bom ou mal é bastante adequada. De fato, no mundo, ninguém é apenas bom ou apenas mal, e esta percepção é uma conquista do ser humano ao longo de seu desenvolvimento, desde criança. Por exemplo, o mesmo pai que comete abuso sexual contra a filha, é quem a coloca para dormir, traz presentes no aniversário, a leva para passear, traz comida para casa, etc. No abuso sexual incestuoso, é muito frequente a confusão de sentimentos em relação à situação e ao agressor, gerando angústia e sofrimento.

A própria situação de abuso pode ser prazerosa para a criança, por mais absurdo que isso possa soar para a maioria das pessoas. Saber que isto não deveria acontecer com ela, traz um imenso sentimento de culpa. A criança pode ainda se sentir culpada por não conseguir se livrar da situação, ignorando o fato de que não é responsabilidade dela por um fim a isto. Cabe ao adulto a proteção da criança e o estabelecimento do limite nas relações.

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